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E então, talvez, eu tenha um sentimento de mortalidade todo o tempo. Mas você está ciente da morte da mesma forma como está ciente da vida. Você está ciente da morte como se fosse jogar uma moeda- cara e coroa, vida e morte. E eu estou bem ciente disso tudo sobre as pessoas, e sobre mim também.Eu sempre me surpreendo quando eu acordo pela manhã.


Esta frase é do pintor britânico Francis Bacon (1909-1992), tema deste espetáculo de dança, através da tradução de algumas de suas principais obras. Delas podemos entrever fragmentos nesta criação dirigida por Johann Kresnik e coreografada por Ismael Ivo, artista de São Paulo, que por sua arte, marca os palcos da dança de muitos lugares do mundo.

É uma dança-teatro que traduz uma obra pictórica e o contexto que a engendrou, por isto vale a menção da frase acima, pensamento sobre vida-e-morte do artista plástico, que se surpreendia “por acordar vivo”, despertando para uma vida árida, mas recheada de arte - árida e violenta-  como o cotidiano também pode ser.

No espetáculo, podemos procurar rastros desta obra genial, como pegadas que farejamos com os sentidos em alerta.  Este pode ser um caminho, mas não é o único. O espetáculo existe em si e para além dos traços que lhe serviram de origem, pois artistas têm o talento- e o poder- de recriar a vida de todos e as obras de muitos.

Esta tradução, aqui recriação de um universo sem palavras,  acontece por meio de uma dança-teatro, uma das maneiras de se construir a arte da dança (moderna e contemporânea) dos séculos XX e XXI, através de estratégias de trabalho próprias de cada diretor. 

Ismael e Kresnik apostam na transposição do universo de Bacon, invertendo seus sentidos, distorcendo corpos, crispando-os a partir das linhas e formas crispadas das pinturas, invertendo direções de movimentos, trabalhando conteúdos importantes para todos os homens e mulheres de seu tempo- raiva, amor, prazer, dor, memória, esquecimento, companhia e abandono. 

Diferentemente de outras danças que podem ser construídas mediante uma sucessão de movimentos, a dança-teatro lida com imagens e suas colagens, muitas vezes apresentando-nos a vida pelo avesso.

Estas imagens se apresentam vivas diante de nós a cada vez que o espetáculo começa. Em cena, crescem em contundência, amplificadas pelo talento de todos. O palco vira uma vitrine, na qual até poderemos nos ver, como em um espelho. 

Em Francis Bacon, passo-a-passo,  os autores nos propõem uma série de temas, assuntos que remetem as obras do pintor britânico : Estudo do corpo humano; A figura humana em movimento; Dois homens lutando; A faca;  Amor e ódio; O filme é a memória; Ciúme; Eu e mim mesmo; Cadáver; A cobertura no espelho; Eu me aproximei tomando distância; Estudo de um homem com flores; A esfinge: um tríptico; Seja meu cachorro; Estudo de um homem sentado; Irmãos e irmãs; Em memória de George Dyer; Autorretrato; O papa; Estudo de um homem respirando e, finalmente- A voz.

Podemos até acompanhar o espetáculo mediante estes tópicos, por exemplo, ao vislumbramos traços do célebre quadro sobre o Papa Inocêncio 10º.  Mas não será sempre necessário.  Que tal esquecê-los e  abrir os olhos e os sentidos para pensar no significado de um cenário metálico como uma câmera frigorífica, sala de cirurgia iluminada pelas paredes ou club noturno?

Ver ainda um homem que nasce do chão, despido como viemos ao mundo, para se erguer e cambaleante encontrar-se com outro para dançar? Ou seria brigar? 

Perceber mesas que se transformam em camas que se transformam em passarelas?

Ver uma moça que é uma moça e também escultura sem pernas ou corpo de mulher amada que se quer conter a qualquer custo?

Pensar em uma faca, que é faca, mas também bastão?

As cenas apresentam realidades que se contam aos pedaços e podemos perceber um cotidiano transfigurado, a partir da sensibilidade dos artistas que transportam memórias em corpos tatuados de significados. 

Para fazer tudo isto, cada um deles carrega em si os instrumentos de sua profissão: a técnica e a expressão adquiridas em longo muito treino e na observação constante de nosso mundo, que nos trazem após mergulhos em suas sensibilidades.

Em Francis Bacon, a dança - um teatro que é dança que é teatro sem palavras- nos traz o conhecimento de artistas através da obra de outros artistas, arrebentando-se universos paralelos das artes contemporâneas. Em cena, temos uma síntese viva, escorrendo como um rio, onde personagens mergulhando-e-voltando à superfície, sussurram e gritam suas histórias.

 Prestemos, com todos os sentidos, atenção neste Bacon de Ivo e Kresnik.

Francis Bacon

Direção: Johann Kresnik

Direção Coreográfica: Ismael Ivo

Berlin/Alemanha

Foto acima: Divulgação 


São Paulo, agosto de 2012.

 


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