Na
abertura de “Goldfish”, em 2020 reconfigurado para o modo remoto, estamos como que imersos em um
ambiente aquoso azul, habitado por um vermelho-dourado.
Silenciosamente
se apresenta, sobre uma parede, uma projeção desfocada (aquário + peixe
dourado). Ela demora a se revelar a sua concretude. Matamos a charada pela
aparição de índices que nos remetem à uma parede, janela e cortina branca.
Aparentemente estamos frente a uma obra que não ocorre num palco.
A
partir daí, as sequências vão nos convocando a outro tipo de observação, frente
a uma casa-aquário, que tem como uma de suas paredes (uma quarta parede?) a
tela pela qual recebemos a obra.
O
estado de imersão inicial se manterá quase até o final deste solo-live de
Alexandre Américo, a partir de um tempo-espaço por ele construído e também pela
câmera que, ao captar imagens, dança com o bailarino, ambos a nos propor dinâmicas
de contemplação.
Nesta
videodança, obra de dança, Américo se apresenta peixe-dourado
imerso em casa-aquário, em dinâmicas onde a solidão parece ter sido um dos
temas disparadores da criação. Todavia, como em muito da arte, um solista quase
nunca está sozinho, para “Goldfish”
tendo concorridos outras expertises, dentre elas a de Samuel Oliveira.
No aquário-casa ficamos, a partir dum trabalho
impar de interpretação, onde se escondem e se mostram formas intensas de corporeidade, planos
contrastantes de uso de espaço e de captação/edição de imagens, alterações
entre luz e sombra, num tempo que nos faz refletir até onde pode ir a potência
de um intérprete quando encarnadas suas
hipóteses estéticas em novas cenas da dança.
Em “Goldfish” quais são os recursos
mobilizados? A maior parte deles vem da arte que pulsa do artista e dos que com
ele assinam, em algum grau, esta criação.
Os
outros recursos da cena-casa – paredes, chão, projetor, livro de arte, bermuda,
figurino/rede- são otimizados a partir
da força motriz coreográfica e artística do capital coreográfico que escorre
lentamente até o fim do solo-live e por sobre os que o assistem.
Nos
giros que se centram no eixo do solista, um tanto deste capital se organiza por
repetições e reiterações de gestos. Isto também resulta numa dilatação dos tempos
assistidos, apontando para um outro tipo de respiração. Sim, peixes respiram na
água, meio líquido que sustenta nossos
corpos ao sermos diferentemente impactados pela gravidade.
A
casa-aquário (com seu morador peixe-dourado) configura-se para que, além de observá-la, possamos nos
sentir, de alguma maneira dentro dela, para ver/escutar/receber suas imagens,
num intenso crescendo que termina por uma fala sobre liberdade,
responsabilidade, compaixão e pertencimento.
Ao
final, ouvimos o resfolegar de Américo, que colapsa sobre o chão. Com ele colapsamos,
desligando-nos da tela e da imagem.
Depois
deste instante em “off”, um mix de imagens multifacetadas do intérprete nos
remetem à primeira sequência do vídeo (azul e dourados iluminando o
tempo-espaço da tela).
Restabelece-se a empatia entre obra e espectadores, num convite pra res-pi-rar e seguir em frente.
*Crítica escrita especialmente para o programa “Semana de Reflexões Críticas-13º Encontro Internacional de Dança Contemporânea” (5 de março de 2021). Natal - Rio Grande do Norte. Crédito da imagem: Brunno Martins.
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