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Memórias-corpo, corpo-território e dança-mídia


O que a dança tem a dizer? live do ciclo "Boca no trombone", maio 2020
Este texto começa por uma indagação a partir do tema que serviu de eixo do VI Colóquio Internacional de Etnocenologia - A voz do corpo, o corpo da voz: artes e ciências do espetáculo.

As indagações: qual corpo e qual voz? Depois delas, uma questão.

Qual corpo? Corpo de bailarinos, que são o primeiro território da dança, sendo a coreografia – discurso a se desenvolver no espaço, o segundo território deste campo estético.

Qual voz? Na coreografia, a dança é voz, para nós ecoando – público à frente desta poderosa mídia presencial, prioritária e irredutivelmente, construída por metáforas corporais e não pela voz que estabelece poiesis mediante palavras.

A questão? Melhor seria dizer questões: o que a dança tem a dizer? Como diz? E para quem?

Quando realizei pós-doutorado na ECA/USP (2000-2002), após concluir doutorado (Comunicação/Semiótica/PUC/SP), as perguntas que subjaziam ao seu tema poderiam ser estas, mas delas, na ocasião, não tinha tanta clareza.

Qual era a pesquisa? A análise da escritura coreográfica de seis peças de criadores diferentes do Brasil: Ana Mondini, Lenora Lobo, Márcia Milhazes, Henrique Rodovalho, Mário Nascimento e o pioneiro Décio Otero, obras que tinham em comum a utilização da língua natural de todos – o brasileiro.

A língua natural tinha sido encarada como elemento “pára-coreográfico”, como em FEVRE (1995), ou como “rastro anterior” (NAVAS, 2001) de uma obra de dança, rastro anterior porque além de impor-se como marca a posteriori depois de sua marcha sobre o palco, e, por isto o nome “rastro”, em princípio já existe antes, como rastro anterior da escritura coreográfica propriamente dita, materializando-se como traço indicial.

Onde, de pronto, localizei o trabalho destes artistas, no uso da língua natural em suas “vozes”?

1. dentro da questão pós-moderna: facultar sua voz a uma língua pouco conhecida, neste momento representante de uma cultura que se dá a conhecer em mundo globalizado, tendo estes artistas vivido em algum momento de suas carreiras em estados onde imperava o que denomino “comoção de periferia” ou “comoção de margem”; 
2. dentro da questão do romântico: a língua natural como língua de afirmação, encarada como cimento da pertença a um local, topus, país, nação.

No entanto, a soma do todo pesquisado apontava para outras e mais questões. Tratava- se da utilização da língua natural, “língua-mãe” que compartilhavam artistas e públicos entre si, através do uso de textos verbais como elementos para-coreográficos, como em

1. Arerê, de Mário Nascimento, baseado em entrevistas com mulheres da cidade de São José do Rio Preto;

2. E sonha lobato, de Lenora Lobo, baseado na literatura infantil de Monteiro Lobato;

3. Forró for All, de Ana Mondini, baseado em canções de Luiz Gonzaga; 

4. Old Melodies, de Décio Obter, baseado em canções do rádio dos anos 40, brasileiras e versões de registros norte-americanos;

5. Registro, de Henrique Rodovalho, baseado em canções de Tom Jobim e 

6. Santa Cruz, de Márcia Milhazes, baseado no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Porque este uso? Porque dar voz a estas palavras, através do corpo da dança em espetáculos estreados nos anos 90 (1993-1998)? As respostas às questões começavam a se espessar, saindo das duas considerações iniciais, acima enunciadas: 

1. comunicação com uma comunidade dada, que por princípio com estes artistas partilha, pelo menos, a língua natural trabalhada como um dos textos de origem da obra, potencializando os circuitos de circulação dramatúrgica, através da ênfase no princípio da discursividade oral, base da matriz verbal, como o trabalhado em Santaella (2001);

2. estabelecimento de discurso cénico que situe a obra numa realidade específica, em uma topologia cultural;

3. afirmação de conhecimento específico de um meio ambiente cultural dado e disseminação desse conhecimento, enquanto afirmação de se pertença a esse meio ambiente;

4. delimitação de territorialidades frente a etnocentrismos de várias grandezas;

5. inserção de uma cultura (relativa ao topus Brasil) nas malhas formadoras das redes culturais da obra, com posterior inclusão desta nas redes de difusão da dança do planeta, estabelecendo-se uma questão de mercado.
A utilização de textos verbais incluia-se, então, em contexto mais amplo, onde certos aspectos da cultura contemporânea e histórica de um topus nacional (NAVAS, 1999), de uma nação, encarada como "algo que se faz e se desfaz" (CHAUÍ, 1987) são apreendidos como elementos de construção de cada obra.

Também por esse motivo, nas criações estudadas, a "dança não para para falar", ou seja, o discurso verbal não aparece predominantemente em sua forma básica de composição estrutural, como em certas peças do norte-americano Bill T. Jones ou da alemã Pina Bausch, ou mesmo em estratégias pára-verbais mais explícitas, como na mímica e pantomina dos balés clássicos.

Como ferramenta, ele insinua-se em formas polissemicamente artísticas, ocupando o papel de uma espécie de catalizador, promovendo a ampliação de potenciais comunicativos, articulando memórias: de artistas e públicos. A língua-pátria estabelece-se como interface para a concretização da tradução sobre um topus chamado Brasil e nesse sentido encarado como uma "dramaturgia de origem", expressão problematizada a seguir.
Dramaturgia de origem: terreno simbólico ancorado na construção da memória de artistas e suas platéias, memória encarada como o que se lembra e o que se esquece, memória que se estabelece pela “arte de esquecer” (IZQUIERDO, 2004). 
A memória é constituída pela capacidade que temos de esquecer, fundamental para nossa sobrevivência. Somos o que lembramos, mas também o que esquecemos. E o corpo, nossa condição de existência no planeta, também nada seria além do que recorda ou esquece, do que esquecemos ou recordamos, ou do que somos recordados, haja vista tais processos informativos não serem diretamente ligados à nossa volição mais consciente.
O corpo dos bailarinos é lugar de lembrança e esquecimento, em metáforas corporais manifestadas por sua movimentação, em possíveis ressignificações sem fim. Informações de toda natureza vão constituindo um corpo-território saturado de memórias, não necessariamente “lembradas”, haja vista a “arte de esquecer” ser o que é: a poética possibilidade do que aqui denomino “fingimento de um olvido”, algo que olvidado fica até aparecer à cena, com dificuldade ou facilmente, quando lembramos ou somos “lembrados”.
Na construção de uma identidade, o corpo desenvolve-se a partir do todo pelo que é constituído, desde muito cedo, misturando-se natureza e cultura, de maneira específica em cada indivíduo, herdeiro de uma genética, inserido em uma família, cultura e sociedade.
É processo de constituição em permanência a partir de “chuvas de perceptos” (SANTAELLA, 1983). E se não podemos, sob pena de não avançar nas menores ações ou tarefas cotidianas, ter em mente (e no corpo) a lembrança do todo percebido, conosco ficam as informações.
O rastro anterior – textos em língua pátria (Brasil como dramaturgia de origem) acionados como material para-coreográfico pelos seis criadores estudados, constituíam-se em memória compartilhada entre todos, artistas e platéias.
Se todos os seres humanos partilham a “arte de esquecer”, intérpretes, coreógrafos, intérpretes-coreógrafos, através de sua arte, possuem uma maneira específica de trabalhar este campo, na composição e recomposição de memória e esquecimento, inventando e reinventado o novo a partir do esquecido e do lembrado. 

Corpo com função de voz e corpo como voz

A memória articula um corpo território, ou um anti-corpo, com em Michel Bernard, filósofo francês na obra “De La Création Chorégraphique”. 
Para ele o anti-corpo, diferentemente de seu corpo veículo, é aquele que atua como função estética, artística, lingüística ou semiótica. O corpo veículo seria aquele que atua com função estética, artística, lingüística ou semiótica, como um “meio de transporte de alguma função, conduzindo significados estruturados fora de vivências próprias, sempre estruturadas de maneira relacional. 
Nas obras dos seis criadores brasileiros temos o corpo-território que trabalho (em Bernard, anti-corpo) e não o corpo veículo, posto as danças terem sido compostas como função de potencializar a circulação de conteúdos lembrados e esquecidos pelos artistas e grande parte das platéias, e não somente como corpos com a função de dar voz a textos verbais em português do Brasil.
As criações tinham este terreno de base a lhes inserir um mesmo momento da cena brasileira e da vida cultural de um país. Mas, eram obras diferentes, originais, portadoras de assinaturas específicas, algumas delas festejadas pela inovação, pela diferença que marcavam em meio às obras de seus pares e mesmo por seu status de marcos definidores de ruptura na carreira de alguns de seus criadores.
A afirmação aponta para outro problema desta discussão: a composição entre redundância e originalidade.
Somos - artistas e gente que os assiste - fruto do que lembramos e esquecemos. Ou seja, somos o que somos porque temos memórias. 
Então, como articular o novo? Como ver o novo, fundamento da tradição moderna? 

Diferenciação, redundância e originalidade

Intérpretes, coreógrafos, ou ainda os mais recentemente denominados intérpretes-coreógrafos, bailarinos solistas que interpretam com quase exclusividade obras próprias, dançam traços ligados à sua genética e cultura. Quem os assiste participa também, ou é participado deste desenvolvimento, imersos que estão em um mesmo ambiente.
A circunstância traria diferenciação e redundância (BERNARD, 2001) à dança de cada um e de cada um em relação a seus pares, as obras de arte resultando de formas diferentes de articulação entre vetores e componentes do todo lembrado e esquecido (em processo contínuo de câmbio a partir da percepção).
Desta afirmação, pode restar a impressão de certo determinismo histórico, presente na força do adquirido (o que o corpo lembra e o que esquece) em detrimento da aparição do “diferente em si” fruto da autoria do criador moderno (LOUPPE, 1997), pedra de fundação da tradição moderna, ancorada na ruptura e na percepção da natureza indômita da sociedade, que é a mesma da natureza indômita da vida (ADORNO, 2009).
Para além do conceito de liberdade burguesa (ADORNO, 2009), manejado como instrumento e mandato para a validação crescente da sociedade de trocas, em situações onde os processos de autonomização podem gerar a supressão destes processos, a natureza indômita da vida, da sociedade e cultura, provê que artistas, antenas da espécie possam “dar voz-corpo e corpo-voz” a nossos pensamentos em “momentos de iluminação”, como em LEPECKI (1998).
Dentro do determinismo, muitos vezes travestido de um poderoso e ideológico discurso de liberdade, a diferenciação emerge, como processo da vida, provendo-nos do fresco e do original.
Além disto, artistas constroem suas obras a partir de processos perceptivos de outra qualidade, em permanência articulando percepção, conhecimento e memória, mediante dedução, indução e abdução, métodos enraizados em nossa mente, constituindo-se tipos de raciocínio que dão forma a pensamentos e inferências (SANTAELLA, 1983). 
Nos processos artísticos prepondera a abdução, o mais original tipo de raciocínio, considerado o ato criativo de se levantar uma hipótese explicativa para um fato surpreendente (SANTAELLA, 1983), a arte acentuadamente se estruturando mediante esta habilidade diferenciada de percepção/elaboração, apresentando-se-nos constructos novos.
A natureza indômita da vida e da cultura e os processos ligados à abdução parecem subjazer aos fundamentos da etno-cena, da etno-arte da cena, aos artistas e públicos não restando somente a condição de seres autônomos e solitários, ilhotas de consumo, corpos e danças a serem modelizados, multiplicados em padrões globais. Além disto, na seis obras estudadas, podemos dizer que a etno-cena estabelece-se em uma etnodramaturgia, que como fluxo de circulação de conteúdos expressivos, articula a memória-corpo dos criadores com a memória-corpo daqueles que os assistem, estabelecendo-se o Brasil como dramaturgia de origem em um religare de rito contemporâneo.

Texto de Cássia Navas
@copyright Cássia Navas
Publicado em VI Colóquio Internacional de Etnocenologia/ Publicizada em site Belo Horizonte, 2-5/agosto/2009 / Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Referências

ADORNO, T. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro : Zahhar
BERNARD, M. De la création chorégraphique. Paris: Centre National de la Danse, 2001
CHAUÍ, M. (1987). Conformismo e Resistência. 2a ed. São Paulo: Brasiliense
FEBVRE, M. Danse contemporaine et théâtralité. Paris: Chiron/Librairie de Ia Danse, 1995
ISQUIERDO, I. A arte de esquecer – Cérebro, Memória e Esquecimento. Rio de Janeiro, Vieira & Lent, 2004 
LEPECKI, A. Rien, pas même le corps. In Danse Nomade. Nouvelles de Danse, n.34-35, Printemps-Eté, Contredanse : Bruxelles, 1998
LOUPPE, L. Poétique de la danse conteporaine. Contredanse/Librarie de la Danse : Bruxelles/Paris, 1997
NAVAS, C. Corpos-território em danças-mídia. Belo Horizonte: Anais do V Congresso ABRACE/UFMG, 2008
NAVAS, C. Dança: escritura, análise e dramaturgia. Salvador: Anais do III Congresso ABRACE/UFBa, 2003
NAVAS, C. Interdisciplinariedade e intradisciplinariedade em dança. In Seminários de Dança I- História em Movimento: biografias e registros em dança. Joinville, Festival de Dança, 2008
NAVAS, C. Território, fronteiras e o tempo que passa. In Balé da Cidade de São Paulo. São Paulo: Formarte, 2003
SANTAELLA, L. A Percepção, uma teoria semiótica. São Paulo: Experimento, 1983 
SANTAELLA, L. Matrizes da linguagem e do pensamento: Sonora, Visual, Verbal. São Paulo: Perspectiva, 2001

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