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Tudo é mistura?

Loie Fuller (litogravura, 1893)
Obras de dança são compostas de conteúdos plurais, comunicados pela transmissão de metáforas  Corporais, em diferentes performances. Desde sempre produto de misturas, a discussão sobre sua estrutura, estudo e fruição híbridos (mestiços, miscigenados) alarga-se no pós-moderno das artes, constituindo bases para um debate contemporâneo que toma o espaço anteriormente ocupado pela constatação da “diversidade entre diferentes” (NAVAS, 1999).
Tratei do tema em pesquisa de doutorado, parte dele publicado em “Dança e Mundialização da Cultura, políticas culturais no eixo Brasil-França”, apontando para discursos sobre a “diversidade” como portadores da pátina da “camuflagem”. Sob eles, obras restam escondidas na embalagem sedutora do
diverso. Como no problematizado em artigo sobre a Aquarela do Brasil, bienal de dança temática sobre o Brasil, realizada em Lyon/França (1998). No texto, assinado no suíço Le Nouveau Quotidien, por Marie-Christine Vernay, à época crítica do Libération (Paris), afirma-se que a dança brasileira não existiria, pois ao evento teria acorrido somente um conjunto de “artistas mestiços”.
Após o choque inicial que a leitura do título deste artigo - “La danse brésilienne n ́existe pas. Lyon invite donc une mosaique d ́artistes metissés” – engendrou podemos perceber o Vernay - ou o editor responsável pela manchete estavam a sinalizar, em tentativa de explicação para a curadoria do evento, e para o festival como um todo. A jornalista se indaga sobre o que poderia amalgamar a diversidade de escolhas, vendida sob o rótulo da dança de um pais.
Para ela, a priori, isto não seria possível, a não ser por um remoto discurso sobre a “situação político-econômica” de um país, por sua vez, matriz da diversidade das danças, ao final, o texto rendendo-se à metáfora do “mosaico de artistas mestiços”, para explicar-se, de algum modo, a inexistência, pelo menos em Lyon, de uma dança única – “brasileira da gema” ou “vrai de vrai”. Para além de outras considerações que esta manchete viesse a engendrar, anuncia-se que a “a dança brasileira não existe”, o estamento podendo ser um catalizador inicial para discussões sobre mistura, hibridização, mestiçagem em dança de nossos tempos.
Basicamente, partimos do pressuposto de que todas as danças- e não somente as brasileiras - são mestiças, posto serem constituídas de elementos que se mesclam nas e pelas trajetórias de cada artista, não somente aquelas de cada coreógrafo, mas também de cada intérprete que suba ao palco. Afasta-se
a possibilidade de se buscar uma original puro desta arte, seja no domínio de sua emissão (artistas dançando em palcos e outros espaços cênicos constituídos a partir de uma performance em dança) ou no domínio de sua recepção (plateias a receber o fenômeno dança em muitas de suas possibilidades de organização).
Em Lyon, o adjetivo “mestiço” é utilizado para dizer-se algo do conjunto ali apresentado, em edição que, assumida como um recorte, constituiu-se em eficiente mostragem de uma topologia cultural. Por outro lado, trata-se de um delator duma dificuldade ou impossibilidade do reconhecimento de uma história em arte que se organiza a partir de cada espetáculo, coreógrafo ou da articulação entre “as atrações” apresentadas nos vários palcos da Biennale. Tal incapacidade não se evidenciara em edições anteriores deste evento, como naqueles dedicados à dança norte-americana ou francesa, que contaram com programas com vasta e variada informação histórica sobre o campo.
Diferentemente destas edições, a edição que tratou do Brasil não apresentou minimamente os contextos de origem de cada companhia, artista, manifestação ou obra verde-e-amarela, este adjetivo servindo apenas para apontar uma ligação “natural” entre todos.
A lacuna principal do evento brasileiro de Lyon, segundo análise realizada em meu doutorado, refere-se a falta de elucidação de contextos, que não acessíveis a pesquisadores e jornalistas- afinal, quais eram as trajetórias de tanta dança e o quê às suas obras subjazia? - foram sendo substituídos por lugares comuns sobre o Brasil, para fins de marketing e divulgação do evento em si.
Na ausência de informações organizadas sobre os fluxos históricos que ali, em profusão, desaguavam, Vernay, perdida entre as ilhas coreográficas da terra de Vera Cruz, reconhece-se incapaz de reconhecer, como se isto possível fosse, em cada espetáculo brasileiro um “representante único” da dança do Brasil. À ela, e a todos que acorreram à Lyon, foi requerido o que Jameson (1996) acredita ser uma não possível solicitação feita ao espectador pós-moderno, quando ele estivesse frente a obras ou construções das quais partissem múltiplos estímulos, como nas instalações do multimídia coreano June Paik, diante da qual seria necessário: “fazer o impossível, ou seja, ver todas as telas ao mesmo tempo, em sua diferença aleatória e radical”. 
Em colagem paratáxica, as obras da dança do Brasil que se apresentaram em Lyon, em um bloco “pós-modernamente hifenado” (NAVAS, 1999), não contaram com instrumentos que lhes facultassem uma mínima intertextualidade ou validação de suas características de origem, por sua vez também tecidas de
intertextualidades entre si e entre tantas obras da cultura coreográfica mundial.
Expostos na bandeja da bienal de Lyon, importante polo de difusão, artistas, criadores, jornalistas e pesquisadores se viram num turbilhonado jogo de espelhos: de um lado, todos eram brasileiros, portadores de uma “hífen-nacionalidade” (NAVAS, 1999), mas ao mesmo tempo, legítimos representantes de discursos artísticos, políticos e culturais de diferentes naturezas e grandezas ancorados em experiências diversas. 
A dubiedade dessa situação, que borra as diferenças entre diferentes, durante um curto período de convivência em espaço único, estabeleceu um rito de passagem. Perambulando por essa zona de fronteira, lócus artificialmente construído, determinados conceitos-clichês sobre o nosso país nos assolavam a todo o momento. Dentre eles o de sermos um “povo que dança”, o que neste momento não será problematizado. 
Uma das lições a se tirar de Lyon, foi a necessidade de estratégias de estudo e validação de características de cada obra, criador, companhia de dança, campo da cultura que se desenvolveu enormemente nos últimos quinze anos, para possíveis cotejos futuros, em ações que envolvam tempo, dinheiro e maturidade de estruturas da cultura e da arte. Parte deste trabalho vem sendo realizada em pesquisas universitárias e por alguns artistas da cena, sem entretanto contar-se com políticas transversais que as façam manter-se em diálogo.
Quanto ao “mosaico mestiço”, a sua percepção, fruto da falta de digitalização dos elementos/atrações que compuseram a mostra, apagando-se as diferenças entre as danças de uma determinada topologia cultural, ela também se apresenta quando, na ausência de estudos específicos, um conjunto de espetáculos ou mesmo uma obra em si, deixam de ser considerados em suas relações contextuais- no campo de sua interdisciplinariedade- e nas relações que nos são propostas pela percepção/recepção de sua estrutura em si - no campo de sua intradisciplinariedade.
Do que estamos tratando? A partir de Adorno (1997), apresenta-se a obra de arte como estrutura em si e desta em relação aos contextos que a ela subjazem. Enquanto estrutura, cada obra é única, a partir da construção “intradisciplinar” (NAVAS, 2008), recolocada em cena a cada récita. A intradisciplinariedade de cada obra a faz portadora de um uma “mestiçagem” de origem, também por sua elaboração a partir da hibridização de elementos de matrizes da linguagem (SANTAELLA: 2001) – sonora, visual e verbal- encarnados em corpos que provém de formações que pós-modernamente estruturam-se como um mix de inputs corporais (LOUPPE, 2000).
A partir dos intérpretes, o caráter original de cada coreografia é, pois, feito de misturas- várias epistemes e métodos incorporados- que se constroem de maneira hibrida, até mesmo pela formação predominante entre bailarinos atuais, como em GERALDI (2007), em uma “maior democracia estilística”, que busca uma “formação técnica mais ‘neutra’ e híbrida”, sem ênfase em habilidades conectadas a estilos históricos.
No contemporâneo da “dança de autor”, focado na criação de intérpretes-coreógrafos, como em LOUPPE (2000), fragiliza-se o caráter ideológico presente nos pioneiros e construtores da dança moderna, considerada invenção original a partir do rechaço das técnicas do balé, para trabalhar-se o hibrido do pós-moderno, em sínteses que um dia poderiam superar a justaposição de unidades distintas que transformadas em “nascentes” vão se mesclando ao fluxo do percepção, como em LOBO & NAVAS (2008). Estas nascentes articulam-se de acordo com os modos de relação entre coreógrafos (e intérpretes) e a arte onde estão inseridos ao longo de extensos ciclos de realização, partilhados entre muitos. Consolidam-se no campo de sua interdisciplinariedade como atores de específicas culturas corporal, da dança e coreográfica (NAVAS, 2008), resultando em miríades de informações incorporadas nos discursos coreográficos, de fato, diversos.
No entretanto, a constatação de que “tudo é diverso” , ou de que “tudo é mistura”, não deve servir para estancar debates ou paralisar consciências e seus discursos, mas fazer avançar o estudo sobre os componentes desta diversidade quase imperceptíveis posto ancorados em entes únicos da cultura, a serem estudados em laboratórios interculturais onde várias disciplinas da ciência e da cultura possam colaborar na análise e síntese de dados, em sua originalidade e redundância, gerando discussões sobre processos de miscigenação, hibridização e recomposição de elementos. Para tanto, tais settings de pesquisa devem levar em conta variadas epistemes e metodologias, ancoradas na experiência de “ver-e-rever” dança como uma prática de pesquisadores afastados de enfoques reducionistas e colonizadores, ainda a imperar em circuitos da validação da arte contemporânea em um panorama dito “pós-colonial”, ou do sul, entre outros.
Criadores em dança nos apresentam partituras mestiças e híbridas, em graus diferentes de modificação e consolidação. Através do corpo em relação com conteúdos que se quer ver transmitidos, surgem informações, filtradas pela memória, concretizadas na cena dançada. No gradiente do quase imperceptível, mas nem por isto menos presente, fulguram traços que, certas vezes, podem ser percebidos com mais clareza, sem sabermos de onde partiram, como um jeito brusco de se voltar o rosto ou de manter uma barra de saia presa às mãos (NAVAS, 2010).
Incorpora-se estes enigmas diante do público, como um bater de asas de um novo voo, em origens que se misturam, fruto de compartilhamento de ação e formação profissional. Em processos únicos, em individuação cênica, no momento da performance, plasma-se “o que insiste em se manifestar”. Na potência da presença, estabelecida entre quem faz e quem vê dança, estabelece-se a criação do ato cênico, construído por trânsitos mestiços, hibridizações em forma de corpo, emanadas por gente em presença de gente.

Texto de Cássia Navas
@copyright Cássia Navas
Publicado Em Anais da VIII Reunião Científica ABRACE- ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, UFMG, Belo Horizonte, 2013

Referências

ADORNO, T. (1988), Teoria Estética. Lisboa: Edições 70
LOUPPE, L. (2000). Corpos híbridos. In: PEREIRA, Roberto & SOTER, Silvia (org.). Lições de Dança 2. Rio de Janeiro: UniverCidade
JAMESON, F. (1996), Pós-Modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática
GERALDI, S. M. (2007). O Estado de ser e não ser das artes performativas contemporâneas. Trabalho de conclusão/Laboratório II, Experimentações sobre o ator, o intérprete e o performer. Campinas: PPGARTES/IA/UNICAMP
LOBO, L. & NAVAS, C (2008) Arte da Composição, Teatro do movimento. Brasília: LGE
NAVAS, C. (1999). Dança e Mundialização: políticas de cultura no eixo Brasil-França. São Paulo: Hucitec.
NAVAS, C (2008). Interdisciplinariedade e intradisciplinariedade em dança. Seminários de Dança I- História em Movimento: biografias e registros em dança. Joinville: Festival de Dança
NAVAS, C. (2010) "Modos de fazer" na dança do Brasil: quatro traçados. In REPERTÓRIO: Teatro & Dança - Ano 13. N. 14. Salvador: UFBa
SANTAELLA, M. L. (2001). Matrizes da Linguagem e do Pensamento. São Paulo: Iluminuras

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