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Brasil, brasilidades

Revue Noire: “Brésil, Brazil, Afro-Brasileiro”, 1992
O que é dança brasileira? Ao se responder a essa provocativa questão deve-se evitar a armadilha ontológica que ela apresenta e revidar-se o desafio com outra pergunta: como é a dança brasileira?
A partir dai, e através de muitas outras provocações correlatas (onde está a dança brasileira, porque dança brasileira, etc ...) teríamos que nos lançar numa primeira empreitada: mapear-se os históricos ou esparsos documentos e publicações que tratem do assunto, para depois, munidos de ouvidos multidisciplinares escutar as pesquisas e experiências em curso.
No limite, teríamos mesmo que nos perguntar sobre a necessidade de um esforço desse porte, em primeiro lugar, pela escassez quase absoluta de recursos para a dança. Por outro lado, esse questionamento não se deveria exclusivamente à penúria reinante, mas à pertinência do tema, dentro de nosso universo profissional.
Para lá dessas considerações, em 1996, a Biennale de Danse de Lyon, que tem como tema a dança brasileira, reaviva essas discussões, recolocando-as na ordem do dia.
Tais interrogações não são uma constante entre os profissionais da dança do país. Emergem e submergem em diferentes períodos históricos, algumas vezes concretizando-se na produção estética de criadores preocupados com as discussões sobre o nacional-popular. Também se revelam em discursos periféricos às obras: criticas, ensaios, textos de programas.
Um exemplo singular desse modelo é uma parte do conjunto de obras do Ballet Stagium, que no final dos anos 70, sob a forte censura do governo militar, se dedicava a contar as "coisas do Brasil", encenando temas, que, aquele momento, teriam sua presença vedada em quaisquer outros forums de discussão democrática, como câmaras parlamentares, universidades ou jornais. 
Paradoxalmente os censores pareciam não compreender a dança desse grupo. E ao não compreendê-la, não a censuravam: a cena de corpos sem palavras parecia escapar a suas inquietações trogloditas.
O Stagium fazia urna dança com as "'coisas do Brasil", brasileira. Naquele momento fugaz, ali estava uma possível definição, resposta apacentadora às questões iniciais desse artigo.
Felizmente se paz houve, ela foi mais do que transitória, pois fruto de opiniões logicamente restritas a seus contextos de tempo e lugar. Denominada de brasileira, a dança que a companhia fazia passou a não despertar um tão grande interesse, mesmo entre o público que fora personagem atuante na construção daquela denominação, pois sua presença maciça colaborara para rotular o trabalho do grupo.
Ao apelidar opiniões e juízos de rótulos, quase que invariavelmente atribuímos a estes as pechas da vilania, da limitação e da rigidez. E isso ocorre sobretudo quando se trata de analisar fenômenos marcadamente relacionados ao fluxo e à continuidade, como é o caso da dança.
Todavia, "rótulos" são estratégias de nomeação para a apreensão de um pedaço do mundo, em táticas que construímos e pelas quais somos construídos desde pequenos. A criança que sabe falar cachorro traduz para si mesma o fenômeno "cachorro". Com isso, tem os cachorros do planeta mais perto dela.
Se rotular é preciso, mais necessária ainda é a consciência da transitoriedade dessa ação, sobretudo em relação às manifestações artísticas, onde em terrenos construídos de perene semovência, vicejam produtos porosos, que surpreendentemente escapam de nossas rnãos e textos verbais.
A nomeação pressupõe um conhecimento básico das características indiciais daquilo que se quer nomear. Para rotular, identificam-se fenômenos, buscando-se identidades, traços que insistentemente se manifestem ao longo do tempo, numa permanência constante, apesar das modificações provocadas ou sofridas.
A busca dessa "permanência que insiste" é a maior das dificuldades para se trabalhar o conceito de identidade dentro da cultura do país. Isso também se dá quando o assunto é dança brasileira, um conjunto de manifestações, no qual adventiciamente costuma-se reunir universos distintos: danças dramáticas populares, de rua, de salão, danças étnicas, dança clássica, contemporânea, pós-moderna e moderna.
Num país onde o melting pot fundador da trama cultural ainda está sobre o fogão, a diversidade extremada acaba por se transformar em empecilho para a construção do conceito de identidade cultural, sobretudo se a busca for guiada por certas grades teóricas, onde esta noção estrutura-se como um conceito de natureza unívoca, apresentando-se os traços identificadores solidamente enfeixados em torno de centralizadoras ideologias axiais. 
Mas se esse obstáculo aparece como uma constante dentro da cultura do país, ele é também compartilhado com alguns de nossos pares latinoamericanos. A vastidão do território, uma formação cultural extremamente hibridizada e hibridizadora, a colonização sanguinária e uma história cultural que se processa já dentro dos tempos modernos num laboratório cultura! de pouco mais de meio milênio, a América Latina é palco cotidiano de experiências que se processam dentro de referencialidades de tempo e espaço singulares.
No Brasil, este estado de coisas produziu tecidos culturais "á nossa moda", olhados com estranheza e preconceito: as fronteiras culturais, que se estabelecem pelo trânsito entre as margens topológicas que as constituem.
Singulares sítios rituais da passagem e do trânsito, essas fronteiras são espaços de múltiplas possibilidades, compostas por elementos que, ao prescindirem de uma forte "cola cultural", operam pela constelação das diferenças. Por esse motivo muitas vezes são consideradas espaços indignos de se constituírem enquanto territórios culturais, sendo relegadas a posições inferiores no ranktng do panorama das artes e da cultura.
Tal configuração nos traz a necessidade de se re-discutir a questão da identidade cultural brasileira através de outros parâmetros, agregando-se à ela suas características de errância e semovêncía. A noção de uma identidade que eurocentradamente se deseja unívoca deve ser substituída pela noção de uma identidade nômade, estruturada dentro de uma rica mobilidade cultural, fundadora do jogo e nele fundada.
Por outro lado, traços culturais originários podem nos apresentar a sua face mais cruel, quando se manifestam através de uma desesperadora ausência de eixos éticos, resultando em lacunas básicas de cidadania, num cotidiano inumano, sustentado por elites, que integramente se mantêm em sua identidade de elites, econômica e intelectual.
Mais marcadamente caracterizada como uma das artes da passagem - do fluxo do tempo, o território da dança é aquele do trânsito, elaborado de diferentes formas ao longo da história das artes cênicas. Para se estabelecer um dos caminhos de reflexão sobre a brasilidade em dança, ao paradigma do transitório, constitutivo de sua especificidade enquanto linguagem, teríamos que agregar o conceito de uma identidade cultural nômade, que apreende a fronteira como território, atualidando-se nas concretudes do fluxo.
Essa reflexão pode apontar-nos certos elementos identificadores de um universo complexo, definindo-se suas exclusividades, também esboçadas por olhares externos, que em determinadas circunstâncias lançam sua mirada sobre as "coisas do Brasil", que felizmente "não têm paz". 
Através da amostragem constituída pelas escolhas/olhares da Biennale de Ia Danse de 1996, a dança do Brasil tem a oportunidade de se apresentar a uma poderosa rede rnundial da difusão da linguagem e o faz num período em que a discussão sobre cultura loca! versus mundiaiização cultural torna-se cada vez mais desafiadora e complicada.
Numa privilegiada situação de exposição, na qual o mapeamento das semelhanças e dessemelhanças virá de questionamentos extra-muros, como escapar do desejo de ser unívoca e não tentar a sorte da sua identidade nômade?
Como constituir-se num site dentro da "internet" da dança e lá permanecer, mantendo as suas características de site diversamente constelar? Esses são alguns dos desafios que a Biennale de 1996 propõe à dança do Brasil. Mais urna vez, em Lyon, a sorte está sendo lançada.

Texto de Cássia NAVAS @copyright Cássia Navas

Publicado em português, inglês e francês na Revue Noire: Brésll, Brazíl, Afro-
Brasiieiro, Art contemporain africain, n, 22, oct-nov» Paris, 1996

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