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Aula/Mirian Druwe, Plataforma Formação Estado da Dança, Parque do Engenho/Piracicaba |
Entramos na sala de espetáculo. Uma
bailarina está deitada de costas para a platéia, em um palco vazio, sem música,
luz especial, de cortinas abertas. Conversamos, procuramos nossas poltronas e,
com sorte, vamos paulatinamente aquietando a respiração e as idéias, deixando
para trás o acontecido em dia provavelmente
atribulado.
A bailarina segue imóvel, atuando em espera.
O espetáculo não se inicia e começamos a nos perguntar: quando começará? Quando
esta moça vai dançar? Quando começará a coreografia, enfim?
A resposta: o espetáculo já começou e
durante todo este tempo estivemos dele participando, ao presenciar alguém que
não se move frente a um conjunto de pessoas que se move à espera da dança de
uma bailarina. Alguns estariam se perguntando – ‘isto é dança’? Sim, é uma das
possibilidades de sua apresentação contemporânea frente a nós.
Subitamente, também me percebo impaciente
frente à cena e uma torrente de questões me acossa: estou cansada de tanta
dança conceitual, de tanta “não-dança”, onde o movimento pode se apresentar
muito ralentado para que, em cena, se estude
a estrutura da linguagem, revelando-nos os processos de cada criação.
Estou cansada da ruptura com as estruturas do balé e da dança moderna pela
simples afirmação do rompimento pelo rompimento. Estou cansada desta vontade de
se vender um bem cultural como o “grito da moda” e da vocação quase
automatizada para um alinhamento com as tendências mundiais.
Enquanto minha mente se agitava, a bailarina
lá permaneceu. Observo-a e aqueles que estão comigo, sentados ou começando a se
sentar, e modifico meus sentimentos.
Começo a me comover com ela, por sua solidão
e quase insignificância, como que amalgamada ao chão, suas roupas confundidas
com a cor da madeira. Não fico mais esperando pela música, pelo apagar das
luzes da platéia e pelo acender da iluminação da cena, por um soar de
trombetas, pelo “sei mais lá o quê”.
Sentada, espero que o espetáculo continue e
agradeço aos artistas que colocaram no palco estes aspectos de nossa (minha) humanidade-
a imobilidade e a solidão, o descanso e a necessidade do breque frente ao fluxo
contínuo.
No espetáculo, é possível que esta artista
esteja a nos representar em nossos momentos de angústia, imobilidade, becos sem
saída, já que a vida não é feita somente de saltos, movimento e beleza, mas de
impasses, paradas, contradições.
A dança trabalha com o que está no mundo, a
partir das idéias corporificadas por artistas especializados em traduzir
questões humanas que, colocadas no palco (à maneira da dança), transformam-se
em metáforas corporais. É uma escrita específica, feita por pessoas em presença
de pessoas e que, em suas origens, prescinde de estruturas mais notadamente
verbais, como o que ocorre com o teatro.
No século XXI, a variedade destes processos
vai se materializando em diversidade de modelos e maneiras de apresentação,
constituindo-se um panorama em que se mesclam obras novas (e novíssimas) a
outras remontadas a partir de partituras coreográficas de outros períodos, como
os balés de repertório do final do século XIX ou as criações modernas do começo
do século XX.
Neste panorama, sobretudo descortinado em
cidades onde o circuito de difusão de dança se apresenta mais vigoroso, podemos
refazer o ritual de “ver dança”, entre artistas e públicos estabelecendo-se um
acontecimento novo- efêmero- quando os sentidos das coreografias circulam entre
arte e platéia.
No palco estará a concretude de cada obra,
construída a partir do modo com que aqueles artistas refletem as questões em
que estamos inseridos, enquanto comunidade. A dança nos representa em nossos
conteúdos corporais: se estamos em tempos de afobação, talvez as obras se
apresentem “afobadas”, se estamos em tempos de solidão, talvez se apresentem
como que “solitárias”. Em tempos de destruição- teremos obras “aos pedaços”, em
tempos de celebração- “criações esfuziantes”.
A cena nos representa de maneira cifrada,
articulando vários sistemas sígnicos complexos, e, muitas vezes, trazendo, de
maneira redundante, questões das quais já nos apercebemos. Mas também faz
emergir novidades, invenções que rompem, mediante intensidades diferentes, com
padrões conhecidos, quebrando-se com processos de repetição, que estabelecem
hábitos.
Conhecido e desconhecido, como na vida -
redundância e originalidade- se apresentam na arte, em estruturas que se
refrescam, através dos tempos, a cada momento de sua fruição.
Pelo fato da expressão em dança ir se
estruturando por metáforas corporais, e não por estruturas emergentemente
ligadas às matrizes verbais, sobre ela, às vezes, nada há a dizer, somente
reiterar que “nada temos a dizer”. Neste caso, tenhamos paciência, capacidade
de escuta/visão e espera - o que foi dito, está dito, mostrado/expresso/dançado
e já chegou até nós, que poderíamos estar dançando, à nossa maneira, o que
acabamos de ver.
Com tudo isto não se quer dizer que temos
que achar todas as obras interessantes e portadoras de potência estética capaz
de significativamente modificar nossa noite ou nosso dia, nos transportando
para longe do “aqui e agora”, arrojando- nos em outro estado de sentimento.
Assim como a modernidade acena com a
diversidade, os públicos modernos se tornam diversos e devem expressar a
diferença quando da recepção das obras de arte. Mas não gostar de uma dança,
não deveria significar um rechaço a toda a dança – notadamente a que se nomeia
como “dança contemporânea”, que acaba, por força das circunstâncias de tanta
ruptura pela ruptura, se transformando em vilã.
Há muitas formas de ser dança contemporânea,
de ser dança enfim. Não gostou de uma dança? Tente outra, venha para os
espetáculos como o cinéfilo que gosta de seus filmes, e portanto de cinema, e
não de “todo o cinema”.
De maneira diferente - pare e pense no que
viu. Os pensamentos em dança são sussurrados, gritados, ditos, anunciados pelo
corpo e suas relações, em maneira não completamente por você ignorada, visto
ter/ser um corpo que se mexe em ambientes mesmos onde bailarinos estão também
imersos.
Além disto, esta arte comunica como em um
ritual, e nele estamos, diante de um palco (italiano, de arena ou em uma
instalação), pois, a cada performance, para além de familiaridades mais
contemporâneas, ainda estão a residir certos sentidos de cerimônias muito
antigas, onde todos dançávamos juntos.
Depois de um tempo decorrido para a
decantação dos conteúdos corporais presenciados, se o que viu não for de seu
agrado, volte outra vez, para ver algo diverso- não desista. Se não achar nada diferente por ai – reclame. Escreva
para o
programador, para o curador, para o artista,
para o jornal. Não concorde, necessariamente com os entendimentos que temos
disto tudo. Esperamos por sua opinião, não somente em forma de palmas
entusiastas, educadas ou vaias, aliás, uma atitude corporal pouco em voga.
Esperamos por suas cartas, bilhetes, mensagens de/em redes sociais, através das
quais alguém nos pergunte de tudo, até mesmo, se “isto é dança” e o porquê de
“tanta dança contemporânea”.
In Revista E, São Paulo: SESC São Paulo, outubro 2011, número 4, ano 18, P. 39-43.
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