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TD - Teatro da Dança (Teatro Itália, SP) plateia |
Estamos no saguão do teatro da Fábrica de
Cultura Vila Brasilândia. Pela porta de vidro, vemos jovens e crianças
conversando, brincando, se enfrentando, em porfirias infanto-juvenis:
mais fortes contra menos fortes, mais rápidos contra mais lentos, maiores
contra pequenos. Todos esperando para ver o espetáculo “Das Tripas Coração”, do criador Ismael Ivo. Fruto do programa BDC-
Biblioteca do Corpo (2015, Secretaria do Estado da Cultura, SP, OS Poieisis,
SESC São Paulo), seus artistas esperam no palco para começar o espetáculo.
Ismael começa a conversar sobre o tema da
obra- tráfico internacional de corpos e de órgãos. Uma das professoras se
manifesta: seus alunos são pequenos demais para encarar este tema
e com eles se retira. Outra, em contraponto, diz que os jovens de sua
escola estão afeitos a este tipo de violência, sendo até mesmo possível que
tenham presenciados corpos “desovados” em alguns lugares deste arrabalde
superpovoado, a Fábrica fazendo limite com
o Rodoanel Mário Covas, fincada no sopé duma
encosta repleta dos barracos da favela que lhe dá nome. Geografia urbana avassaladora.
Depois deste diálogo, percebe-se que há
gente de muitas faixas etárias esperando para entrar no teatro. O que fazer?
Proponho que nos instalemos sobre uma escada que conduz ao balcão do teatro e
que se tente a conversa. Depois de alguns ensaios, nada a fazer. Este grupo
heterogêneo de pessoas, muitos dos quais ansiosos por testar as “autoridades”
que têm à frente- os adolescentes fizeram a festa-, nada escutaria. Alguns
retrucariam ao que Ivo tentava dizer, outros tentavam desesperadamente estar
conosco – as “autoridades”- na escada.
Ninguém escuta, tenho a impressão que todos
querem ser escutados, de alguma maneira e ponto final. Frente à babel, sugere-
se que o espetáculo comece já e que todos se sentem na plateia, embora o previsto seria, como o tinha sido feito até ali, que, antes de
tudo, grupos pequenos de espectadores deambulassem por entre as
mesas do palco sobre as quais os bailarinos atuam, como corpos em
um metafórico jardim encarnado.
Aos borbotões, todos entramos, jovens,
crianças, gestores, coreógrafo, professores e etc. Enfim! Nada de silêncio na
plateia. Nem verbal: quase todos falam, gritam, conversam e nem qualquer
silêncio corporal: há muita agitação entre todos, que chegam a sentar-se uns
nos colos dos outros, pois a lotação estava para lá de esgotada.
De minha parte, na última fila do teatro,
espero ansiosa para que o espetáculo comece prestando atenção às performances
no palco e à outra- a da plateia. Início do espetáculo: os artistas estão sobre
as mesas, um vídeo projeta-se no ciclorama, adiantando alguns dos temas da
peça. Barulho total e os artistas, de fato, corajosamente concentrados em fazer seu trabalho, seguem imersos
nesta polifonia de tudo.
Inicia-se o solo da bailarina chinesa na
boca de cena. Um comentário estala à minha frente: ¨_ Um nóia! olha.” Este
seria um dos muitos dentre os enunciados por garotos e garotas, literalmente,
me rodeando, movendo-se sem parar atrás e à frente de minha fileira.
Atrás de mim, algumas professoras também conversavam incessantemente entre si,
mas calam-se quando lhes peço - por favor e, pelo menos entre elas - um pouco
de silêncio.
Quais os outros comentários de que me
lembro? Quando uma música mais percussiva se inicia: “_ O demônio !!”,
quando pas de deux mais próximos ao solo: “ _ Capoeira!”, quando uma
moça e um moço dançam juntos: “_ Estão transando!”, e, quando, ao final da
obra, uma das bailarinas aparece de costas e sem blusa ou top – o que
insinuaria uma nudez de seu torso : “_ Gostosa!”.
Comentários que vão aos poucos traduzindo –
em voz bem alta- uma possível interpretação do que aqueles jovens, naquele
momento, tentam decifrar do espetáculo, à semelhança do que ocorre em muitas
das plateias do mundo.
Quando em face de um objeto inaugural
(muitos daqueles jovens jamais tinham visto qualquer espetáculo de dança), buscamos
em nosso repertório, seja ele qual for, traduções para o que estamos
assistindo. Entretanto, em certos circuitos onde a plateia conjuga a língua do
“bem comportar-se frente a um espetáculo”, estes comentários são pensados e não
articulados em voz alta.
Não creio que meninos de outras situações
socioculturais não busquem conteúdos em seus repertórios para “explicar” o
que acontece no palco. Entretanto, talvez não os partilhem com tanto
alarde, digamos assim.
Ao final, a plateia da Brasilândia calou-se
em algum momento, nesta dupla performance entre palco e plateia?
Sim, pelo que pude observar, quando os
bailarinos dançavam em grupos maiores de interpretes, estabelecendo-se danças
de conjunto. Isto é também um padrão entre muitas das plateias de jovens e
crianças do Brasil e de outros lugares do mundo, em que tive a oportunidade de
trabalhar, em quadros semelhantes a este, como no México, Argentina e França.
Quanto mais gente temos dançando em cena, mais um silêncio
de palavras vai se organizando na plateia. É como se uma massa de
informações corporais demandasse um tipo de atenção mais focada e coletiva de
uma outra “massa”, aquela que sentada assiste, em percepção continua o
que se dança/interpreta/representa/apresenta.
Enfim: a plateia performática da Vila
Brasilândia foi um laboratório (intenso e atabalhoado) de percepção e
interpretação de dança, ali no “vivo do assunto”, entre todos. Nele, os jovens
artistas do Biblioteca do Corpo, conduziram o espetáculo “com a mão no leme, pé no furacão”, de maneira profissional, como uma companhia
de dança apaixonada pelo que fazia.
O espetáculo “Das tripas, coração”, ali
sendo dançado nos cafundós da cidade de São Paulo estava em um dos seus lugares
certos, como o estivera no palco do SESC Vila Mariana, como estaria
em outro palco da cidade de Jacareí. Fundamental experiência, para
os que nunca tinham visto dança, mas também para aqueles que muito ou pouco já
tinham visto. Uma experiência em arte, modificadora, no vai-e-vem
perceptivo de simbologia viva entre aqueles nela envolvidos.
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