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Carta sobre uma plateia da Fábrica de Cultura Vila Brasilândia São Paulo, outubro de 2015

TD - Teatro da Dança (Teatro Itália, SP) plateia
Estamos no saguão do teatro da Fábrica de Cultura Vila Brasilândia. Pela porta de vidro, vemos jovens e crianças conversando, brincando, se enfrentando, em porfirias infanto-juvenis: mais fortes contra menos fortes, mais rápidos contra mais lentos, maiores contra pequenos. Todos esperando para ver o espetáculo “Das Tripas Coração”, do criador Ismael Ivo. Fruto do programa BDC- Biblioteca do Corpo (2015, Secretaria do Estado da Cultura, SP, OS Poieisis, SESC São Paulo), seus artistas esperam no palco para começar o espetáculo.
Ismael começa a conversar sobre o tema da obra- tráfico internacional de corpos e de órgãos. Uma das professoras se manifesta: seus alunos são pequenos demais para encarar este tema e com eles se retira. Outra, em contraponto, diz que os jovens de sua escola estão afeitos a este tipo de violência, sendo até mesmo possível que tenham presenciados corpos “desovados” em alguns lugares deste arrabalde superpovoado, a Fábrica fazendo limite  com
o Rodoanel Mário Covas, fincada no sopé duma encosta repleta dos barracos da favela que lhe dá nome. Geografia urbana avassaladora.
Depois deste diálogo, percebe-se que há gente de muitas faixas etárias esperando para entrar no teatro. O que fazer? Proponho que nos instalemos sobre uma escada que conduz ao balcão do teatro e que se tente a conversa. Depois de alguns ensaios, nada a fazer. Este grupo heterogêneo de pessoas, muitos dos quais ansiosos por testar as “autoridades” que têm à frente- os adolescentes fizeram a festa-, nada escutaria. Alguns retrucariam ao que Ivo tentava dizer, outros tentavam desesperadamente estar conosco – as “autoridades”- na escada.
Ninguém escuta, tenho a impressão que todos querem ser escutados, de alguma maneira e ponto final. Frente à babel, sugere- se que o espetáculo comece já e que todos se sentem na plateia, embora o previsto seria, como o tinha sido feito até ali, que, antes de tudo, grupos pequenos de espectadores deambulassem por entre as mesas do palco sobre as quais os bailarinos atuam, como corpos em um metafórico jardim encarnado.
Aos borbotões, todos entramos, jovens, crianças, gestores, coreógrafo, professores e etc. Enfim! Nada de silêncio na plateia. Nem verbal: quase todos falam, gritam, conversam e nem qualquer silêncio corporal: há muita agitação entre todos, que chegam a sentar-se uns nos colos dos outros, pois a lotação estava para lá de esgotada.
De minha parte, na última fila do teatro, espero ansiosa para que o espetáculo comece prestando atenção às performances no palco e à outra- a da plateia. Início do espetáculo: os artistas estão sobre as mesas, um vídeo projeta-se no ciclorama, adiantando alguns dos temas da peça. Barulho total e os artistas, de fato, corajosamente concentrados em fazer seu trabalho, seguem imersos nesta polifonia de tudo.
Inicia-se o solo da bailarina chinesa na boca de cena. Um comentário estala à minha frente: ¨_ Um nóia! olha.” Este seria um dos muitos dentre os enunciados por garotos e garotas, literalmente, me rodeando, movendo-se sem parar atrás e à frente de minha fileira. Atrás de mim, algumas professoras também conversavam incessantemente entre si, mas calam-se quando lhes peço - por favor e, pelo menos entre elas - um pouco de silêncio.
Quais os outros comentários de que me lembro? Quando uma música mais percussiva se inicia: “_ O demônio !!”, quando pas de deux mais próximos ao solo: “ _ Capoeira!”, quando uma moça e um moço dançam juntos: “_ Estão transando!”, e, quando, ao final da obra, uma das bailarinas aparece de costas e sem blusa ou top – o que insinuaria uma nudez de seu torso : “_ Gostosa!”.
Comentários que vão aos poucos traduzindo – em voz bem alta- uma possível interpretação do que aqueles jovens, naquele momento, tentam decifrar do espetáculo, à semelhança do que ocorre em muitas das plateias do mundo.
Quando em face de um objeto inaugural (muitos daqueles jovens jamais tinham visto qualquer espetáculo de dança), buscamos em nosso repertório, seja ele qual for, traduções para o que estamos assistindo. Entretanto, em certos circuitos onde a plateia conjuga a língua do “bem comportar-se frente a um espetáculo”, estes comentários são pensados e não articulados em voz alta.
Não creio que meninos de outras situações socioculturais não busquem conteúdos em seus repertórios para “explicar” o que acontece no palco. Entretanto, talvez não os partilhem com tanto alarde, digamos assim.
Ao final, a plateia da Brasilândia calou-se em algum momento, nesta dupla performance entre palco e plateia?
Sim, pelo que pude observar, quando os bailarinos dançavam em grupos maiores de interpretes, estabelecendo-se danças de conjunto. Isto é também um padrão entre muitas das plateias de jovens e crianças do Brasil e de outros lugares do mundo, em que tive a oportunidade de trabalhar, em quadros semelhantes a este, como no México, Argentina e França.
Quanto mais gente temos dançando em cena, mais um silêncio de palavras vai se organizando na plateia. É como se uma massa de informações corporais demandasse um tipo de atenção mais focada e coletiva de uma outra “massa”, aquela que sentada assiste, em percepção continua o que se dança/interpreta/representa/apresenta.
Enfim: a plateia performática da Vila Brasilândia foi um laboratório (intenso e atabalhoado) de percepção e interpretação de dança, ali no “vivo do assunto”, entre todos. Nele, os jovens artistas do Biblioteca do Corpo, conduziram o espetáculo “com a mão no leme, pé no furacão”, de maneira profissional, como uma companhia de dança apaixonada pelo que fazia.
O espetáculo “Das tripas, coração”, ali sendo dançado nos cafundós da cidade de São Paulo estava em um dos seus lugares certos, como o estivera no palco do SESC Vila Mariana, como estaria em outro palco da cidade de Jacareí. Fundamental experiência, para os que nunca tinham visto dança, mas também para aqueles que muito ou pouco já tinham visto. Uma experiência em arte, modificadora, no vai-e-vem perceptivo de simbologia viva entre aqueles nela envolvidos.

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