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Fachada Instituo de Artes / Unicamp |
A maior parte da formação em
dança no Brasil está sob a tutela de uma rede informal e privada, o que resulta
em um sistema de ensino pelo qual se fazem necessários os ônus de custos
arcados individualmente e aquele ligado à ausência, quase generalizada, de
certificados ou títulos oficiais de profissionalização. Tais condições de
ensino e aprendizado dificultam o acesso à formação em dança, sobretudo no que
toca a pessoas pertencentes a camadas sociais economicamente menos favorecidas.
Ainda que escassas, existem
bolsas de apoio, que incentivam o estudo informal, a pesquisa e a criação, além
das “leis de incentivo” e subvenção direta, pelas quais são viabilizadas verbas
para a montagem de espetáculos, pagamento de salas de ensaio, manutenção de
elencos, turnês, festivais e mostras. Todavia, estes recursos não se dirigem
aos processos de formação em si.
Apesar disto, o Brasil é
reconhecido pela qualidade de sua dança, de seus intérpretes e bailarinos,
exportando-se artistas para muitas das melhores companhias internacionais,
fixando-se muitos deles em nosso território, empregados em grupos, escolas,
faculdades e projetos artísticos de todo o gênero, inclusive, mais
recentemente, aqueles ligados à inclusão sócio-cultural.
Este estado de coisas,
estabelece um panorama rico e diversificado, onde apesar do que ainda está para
ser construído, muito já foi edificado, por força de artistas, professores,
pesquisadores, agentes culturais.
Em nosso território, além das
atividades ligadas à “cultura coreográfica” - conjunto de obras realizadas
profissionalmente com o objetivo precípuo de comunicar a experiência humana a
partir da construção da dança em uma cena teatral -, temos uma imensa gama de
atividades ligadas à “cultura da dança”.
Nesta última podemos abrigar
as ações relacionadas à cultura popular e de tradição: danças de
festas/celebrações profanas e religiosas, em que o sentido da manifestação
apresenta, de maneira proeminente, a ênfase em um “religare’ - reconecção com o
cosmos, com o sacro, com a humanidade, sem intenções de comunicação da
experiência humana através de uma obra de arte, strictu sensu.
Apesar desta imensa riqueza, à
qual subjazem circuitos e manifestações de uma “cultura corporal”
excepcionalmente rica, traduzida, por exemplo, pela forma internacionalmente
reconhecida de nosso futebol, existem poucos cursos de graduação em dança no
país, sobretudo aqueles pertencentes ao organograma de universidades públicas.
O primeiro deles foi a Escola
de Dança da UFBa, criada no final dos anos 50, por um reitor preocupado em
marcar a diferença de um novo campus universitário federal mediante a inserção
das artes em seus programas.
Após esta primeira graduação,
tivemos que esperar até os anos 80, quando são fundados quatro cursos, no bojo
de um período inaugural de redemocratização nacional, em que se reabre a
possibilidade da retomada das artes no ensino universitário como um todo.
São deste período as graduação
em dança da UNICAMP, da UNIVERCIDADE (Rio de Janeiro), o curso da
PUC/Paraná-Fundação Teatro Guaíra, atualmente integrando a Faculdade (estadual)
de Artes do Paraná (FAP) e a graduação, hoje já extinta, da Faculdade Santa
Cecília dos Bandeirantes, centro universitário particular da cidade paulista de
Santos.
O início das quatro
graduações, coincide com o aparecimento massivo de escolas de dança, academias
de ginástica e grandes festivais amadores da década de 80, época em que se deu
o assim chamado “boom do culto ao corpo” característico deste período.
Num primeiro momento, a
criação dos bacharelados em dança surge em descompasso com os rumos da produção
do mercado, deixando evidente um não engendramento entre universidade e certas
etapas do sistema produtivo da dança, ainda que estas rotas estejam, em alguns
casos, sendo sucessivamente corrigidas.
De uma maneira geral, há que
se salientar que as graduações em dança, de maneira acertada, não se propuseram
a suprir certos modelos do mercado, ancorados em pressupostos de performance
corporal a ser atingida como em uma corrida de obstáculos. Estes modelos se
ancoravam em circuitos de difusão de uma das formas da dança cênica ocidental,
o balé, onde se privilegia, por exemplo e em muitas de suas produções, somente
a quantidade e a qualidade de grandes saltos e piruetas, realizadas à frente de
espectadores que chegam a contabilizar, em voz alta, o número de vezes em que
tais dinâmicas são realizadas por cada bailarino.
Como proposta ampla, de
maneira oposta, no Brasil e também internacionalmente, em cursos superiores e
conservatórios superiores (como é o caso na Alemanha) apresentam-se outros
paradigmas de formação de intérpretes, artistas e professores de dança (no
quadro das licenciaturas), programas capazes de apontar para uma mudança do
panorama resultante da maior parte das escolas livres, ou das poucas oficiais,
que, até hoje, alimentam um mercado formado de profissionais que iniciam seus
estudos entre oito e quinze anos de idade, antes, por conseguinte, do período
de formação universitária.
Os modelos estiveram, e estão,
alicerçados na história das artes cênicas do século XX, em eixos que ainda
estruturam as danças dos dias de hoje, nesta passagem de século que está a se
construir. Estão fundados na “modernidade em dança”, onde a formação do
intérprete-artista parte do pressuposto de sua individuação e expressão num
mundo que constrói por seu trabalho, conhecimento, atuação, contribuição
cidadã.
A partir da modernidade, a
ênfase dado ao “corpo que dança”, treinado cronológica e necessariamente desde
muito cedo, matiza-se por pressupostos de trabalho a partir do “self” do
indivíduo que possui este corpo. Como ser humano e artista, passada a fase da
adolescência, ele tomará em suas mãos o seu corpo-destino individual para
torná-lo ferramenta de comunicação corporal humana, comunicação de conteúdos de
todos nós.
Na conjugação dos pressupostos
de tal arte, ancorados em diferentes práticas e estratégias, muitas vezes
programáticas, de sua afirmação ideológica, a cisão entre “corpo e mente”,
atualmente discutível até em termos da neurociência muscular, tem a distância
entre os dois pólos que a compõem em muito encurtada, palmilhada por
instrumentos oriundos de várias formas do conhecimento, como arte, cultura,
ciências, religião.
Conseqüência destas novas
dinâmicas, problematizada e recolocada em novas práticas criativas e
artísticas, a noção de um “corpo expressivo”, amplia-se a partir de um corpo em
que a performance física era o foco da cena – como em certos balés de
repertório do século XIX.
Tal panorama gera modificações
na formação em dança, seja ela destinada exclusivamente a artistas ou
endereçada a pessoas para quem um exercício pleno de vidas e cidadania passaria
por uma educação ampliada, em que o trabalho corporal através da arte estivesse
imbricado. Isto se realiza, já no início do século XX, através dos múltiplos
trabalhos destinados à compreensão, treinamento e expressão do corpo, que, ao
longo do tempo, constituir-se-iam em bases de uma enorme gama de técnicas e
sistemas, ao conjunto dos quais, algumas vezes, atribui-se a denominação
“educação somática”.
O paradigma do “corpo
expressivo”, pertença, instrumento e condição da sobrevivência humana no mundo,
locus estruturado em carne de manifestações de culturas diversas, foi ponto de
partida perseguido pelas universidades públicas, sobremaneira a UNICAMP, ainda
que algumas instituições privadas, principalmente aquelas que integram uma nova
fase de abertura de graduações em dança no final dos anos 90, tenham se
proposto como alternativas dentro deste modo de operação, como é o caso do
“Curso de Dança e Movimento” da Universidade Anhembi Morumbi, que em conjunto
com o “Comunicação das Artes do Corpo” (PUC/SP) e a graduação em dança, da
Faculdade de Artes de São Paulo (ex- Conservatório Marcelo Tupinambá), são, na
cidade de São Paulo, as graduações do setor.
Na década de 90 e início deste
século, o significativo aumento de graduações em instituições privadas
relaciona-se ao fenômeno de expansão dos centros universitários particulares e
a transformação destes em universidades, dentro de uma dinâmica em que seria
preciso agregar-se o máximo possível de cursos para a validação de estruturas
privadas de terceiro grau.
Se tais circunstâncias
estabelecem uma bem-vinda possibilidade de expansão de cursos na área, por
outro lado, estabelecem condições propícias para o aparecimento de propostas de
todo o tipo, gerando-se processos que terão que ser forçosamente avaliados no
decorrer dos próximos anos.
Neste panorama, o incentivo à
implantação de graduações públicas em dança, a partir de seus pressupostos
básicos como área de conhecimento, capazes de dar continuidade a toda uma
construção no setor, além de marcarem o ensino, a pesquisa e a extensão, eixos
da atividade acadêmica completa, por inovações e avanços na área, deve
contribuir enormemente para o
estabelecimento de novas
proposições globais.
Mediante laboratórios e
observatórios de políticas para o cenário como um todo, deve propiciar,
sobretudo com vistas à diminuição de áridas distâncias entre artistas da dança,
a abertura de espaços democráticos para novas articulações entre a sua ciência,
sua teoria e história, suas técnicas e pressupostos artísticos fundantes,
muitas vezes, apartados por força de seu desenvolvimento histórico como arte do
espetáculo.
Para tanto, haverá que ser
levado em conta o panorama resultante da clivagem entre bailarinos e bailarinos
modernos, entre novas e velhas danças, marco da história moderna da linguagem.
Como se disse, por um lado,
tais rupturas resultaram em possibilidades de reconstrução da linguagem através
da tomada consciente, por parte de cada criador moderno, de seu corpo-destino,
que substitui um “corpo-instrumento”.
Por outro, contribuíram para o
avanço de uma das primeiras “multinacionais da cultura”, nos primeiros tempos,
estruturada de maneira atabalhoada e informal, mas extremamente competente,
haja vista sua modelização estar presente na figura (e memória corporal) de
professores de balé, espalhados pelos quatro cantos de um planeta de
cartografia ampliada após a segunda Grande Guerra.
Através da imensa rede de
escolas de “balé clássico”, no ensino da dança, a cargo de mestres geralmente
distantes do ato criativo em si, também unidade original dos grandes balés de
repertório, aferra-se à reprodução de estratégias de treinamento corporal tout
court, despojando a prática da dança de estratégias artísticas da invenção que
lhe foram, desde sempre, estruturantes, agregando-se-lhe de maneira superficial
os sonhos de construção de um ideal centralizado num tempo-espaço europeu da
segunda metade do século XIX.
Neste sentido, a ruptura do
moderno colabora para uma cisão fundamental, no que toca à dança clássica do
ocidente, concretizada de maneira paradigmática na transmissão, sem qualquer
atitude crítica, de estratégias corporais que se ministram separadamente da
arte que lhes deu origem e fundamento.
Isola-se a performance
competente do ato artístico em si, originalmente revelador de aspectos opacos
da existência humana. A articulação destes lados de um mesmo universo é um dos
desafios da arte moderna da dança na universidade pública contemporânea.
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